TEORIA II


FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA MATA SUL - FAMASUL
                                                                                                          

PLANO DE ENSINO DE TEORIA DA LITERATURA II
Professor Admmauro Gommes



FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA MATA SUL – FAMASUL
AUTARQUIA EDUCACIONAL DA MATA SUL – AEMASUL
BR 101 sul – km 186 Engenho São Manoel, s/n – 55540-000 – Palmares – PE
Fone: 0xx-81-3661-1755 – www.famasul.edu.br
PLANO DE ENSINO

I – IDENTIFICAÇÃO: 
CURSO: Licenciatura Plena em Letras
DISCIPLINA: Teoria da Literatura II
PRÉ-REQUISITO: Teoria da Literatura I
DEPARTAMENTO: Letras
PROFESSOR RESPONSÁVEL: Ademauro Maurício Gomes
Ano: 2020
Semestre Letivo:   (   ) Primeiro    (  X ) Segundo
Total de Créditos: 4
Carga Horária: 60 h/a   



II – EMENTA: Estudo das modalidades literárias da prosa de ficção e seus elementos estruturadores.




III – OBJETIVOS
Geral: Distinguir os tópicos da narrativa de ficção dentro de uma abordagem teórico-literária.

Específico: Analisar os elementos que caracterizam a narrativa de ficção.




IV – CONTEÚDO PROGRAMÁTICO                                       

4.1. Conceito de Ficção – Verossimilhança
4.2. Estudo da PersonagemTipologia e Funções
4.3. Foco Narrativo (Ponto de Vista)
4.4. O Narrador
4.5. O TempoTempo da Ficção, da Escrita e da Leitura
4.6. Espaço e Ambientação
4.7. Enredo
4.8. Espécies de Ficção: Estrutura básica do conto e da novela. Gênese histórica do romance 
(técnicas e modernidade). Estudo da Crônica
4.9. Atividade Não Presencial (ANP): Estudo de Textos dos autores: Fernando Sabino, 
Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José de Alencar, Kafka, Machado de Assis, 
Luiz Berto e Clarice Lispector.  
  




V – MÉTODOS DIDÁTICOS DE ENSINO

( X ) Aula Expositiva
(     ) Seminário
( X ) Leitura Dirigida
( X ) Demonstração (prática realizada pelo Professor)
( X ) Laboratório (prática realizada on-line pelo aluno)
(     ) Trabalho de Campo
( X ) Produção de resenhas
(     ) Trabalho de Conclusão de Curso/Monografia
( X ) Palestra com autor convidado em videoconferência




VI – CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO

Atividades realizadas em sala de aula e/ou on-line, individual e em grupo, levando-se em conta a correta 
argumentaçãodomínio de conceitosvocabulário específico e uso adequado da língua culta.

Leitura orientada (20 horas: A crônica literária).
Participação de forma interativa.


VII – REFERÊNCIAS

BENDER, Flora Christina e LAURITO, Ilka Brunhilde. Crônica. São Paulo: Scipione, 1993.
BRAIT, Beth. A Personagem. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1997.  
GOMMES, Admmauro.  A mulher da sombrinha e outras crônicas. Recife: Bagaço, 2007.      
MOISÉS, Massaud. A análise literária. São Paulo: Cultrix, 2007.          
SCHÜLER, Donaldo. Teoria do Romance.  São Paulo: Ática, 1986.  
WELLEK, René & WARREN, Austin. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. 
São Paulo: Martins Fontes, 2003.


BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
BERTO, Luiz. A Serenata. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.  
DIMAS, Antonio. Espaço e romance. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1994.         
GANCHO, Cândido Vilares. Como analisar narrativa. Série Princípios. S
ão Paulo: Ática, 1993.                                                                                                                                                     
LEITE, Lígia Chiappini Moraes. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1983. 
QUEIROZ, Rachel de. O Quinze. 72ª ed. São Paulo: Arx, 2002.       
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. São Paulo: Record, 1997.

                         

                                                             
1.1. FICÇÃO
Luiz Costa Lima
 (...) Em relação às ficções literárias acrescento apenas um dado: é extremamente comum ouvir-se falar, quando se trata de ficção literária, de como a ficção está próxima da mentira. Embora frequente, esse é um dos maiores absurdos que já escutei. Sua diferença, contudo é de fácil entendimento. Uma mentira é uma afirmação que se pode desmanchar a qualquer instante; uma mentira supõe uma verdade; eu não minto se não souber qual a verdade. A primeira grande distinção entre mentira e ficção consiste em que a ficção não trabalha a priori com a ideia de verdade. A ficção se cruza com a verdade à medida que ela, ficção, se cruza com o mundo, porque, do contrário, seria uma grande paranóia ou uma grande fantasia. Ainda que os termos imaginação e fantasia sejam tomados como sinônimos, a fantasia é simplesmente um mecanismo compensatório. Por exemplo, se enquanto lhes falo me dissesse: Como seria melhor se tivesse continuado lá na piscina do hotel, onde de manhã havia uma brisa, o céu azul do Recife e uma vista digna de se ver; então se me deixasse embalar por isso, me tornaria um joguete de minha própria fantasia. Aqui, em troca, não estou fazendo fantasia; a única coisa que não se pode fazer com a ficção conjetural na sala de aula é praticar a fantasia. A mentira pertence a um campo bem pragmático: o mentiroso sabe o que faz, conhece a verdade que nega; decide-se por ela. Segundo ponto: ao contrário das ficções conjeturais ou necessárias, as ficções literárias tendem a se pôr a si mesmas em questão. O exemplo clássico seria o do teatro dentro do teatro, em Shakespeare. E no Quixote, na famosa cena da taberna, a luta dos dois espadachins, no teatro de marionetes. A intervenção do Quixote mostra que a cena não é da ordem do pragmático: porque o Quixote não concorda com o desfecho da luta, intervém, arrebenta os bonecos e o dono quer que pague por seu estrago. De sua parte, o leitor ri: o Quixote se deixa guiar por sua demência. Em seu lugar, o espectador sadio e normal não confunde os ruídos da rua com a confusão que assiste em sua telenovela. (O fato de ser essa uma ficção pobre, industrializada não a confunde com os barulhos da rua). O mundo da ficção é um mundo do faz-de-conta, ainda que sério. Essa seriedade faz com que ela se cruze, em seu caminho, com a verdade e/ou que se desnude a si mesma, que se declare ficção. A verdade da ficção é o desnudamento, é o apresentar-se como ficção, o mostrar-se como ficção. O que antes chamamos de ficções necessárias não têm esse direito. Ainda que o juiz saiba que dos 10 condenados à sua frente aquele miserável ali estava morrendo de fome quando roubou um pedaço de pão, não lhe seria possível inocentá-lo, porque todo o aparato penal supõe que o ato foi praticado a partir da opção exercida por sujeitos livres. Como a liberdade é a ficção necessária ao direito penal, o juiz não pode senão condená-lo. Dada certa sociedade – no exemplo a sociedade ocidental -, a ficção necessária se impõe por si mesma, i.e., se expõe como um dado da natureza. Já as ficções literárias se põem a si próprias como ficção.
Se, a partir da análise de Maquiavel, víamos o poder como uma ficção necessária, se, em troca, a ficção literária tem essa qualidade de autodesnudamento, pode-se então acrescentar que a função última da ficção é apresentar a verdadeira face do poder. O que significa dizer: a ficção tem a vocação crítica de mostrar aquilo que estava nos seduzindo. Isso, porém, não a torna verdade; mas nos diz que ela é o meio humano para que, através de um discurso que se autoapresenta como não-verdade, apreenda-se a verdade.

Leia o artigo completo em:

LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. Uma breve apresentação.  
http://www.revistaeutomia.com.br/volumes/Ano1-Volume1/especial-destaques/Historia-Ficcao-Literatura_Luiz-Costa-Lima.pdf



1.2. A PERSONAGEM
Beth Brait
Um aspecto relevante desses estudos é o que diz respeito à semelhança existente entre personagem e pessoa, conceito centrado na discutida, e raras vezes compreendida, mimesis aristotélica. Durante muito tempo, o termo mimesis foi traduzido como sendo "imitação do real", como referência direta à elaboração de uma semelhança ou imagem da natureza. Essa concepção, até certo ponto empobrecedora das afirmações contidas no discurso aristotélico, marcou por longo tempo as tentativas de conceituação, caracterização e valoração da personagem.
Na verdade, o que alguns críticos contemporâneos têm procurado demonstrar é que uma leitura mais aprofundada e menos marcada do conceito de arte, e, consequentemente, do conceito de mimesis contidos na Poética, revela o quanto Aristóteles estava preocupado não só com aquilo que é "imitado" ou "refletido" num poema, mas também com a própria maneira de ser do poema e com os meios utilizados pelo poeta para a elaboração de sua obra.
Aristóteles aponta, entre outras coisas, para dois aspectos essenciais:
- a personagem como reflexo da pessoa humana;
- a personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que regem o texto.  (...)
Coincidindo com o apogeu da narrativa romanesca, estendem-se as pesquisas teóricas que procuram encontrar na gênese da obra de arte, nas circunstâncias psicológicas e sociais que cercam o artista, os mistérios da criação e, consequentemente, a natureza e a função da personagem. Nesse sentido, os seres fictícios não são mais vistos como imitação do mundo exterior, mas como projeção da maneira de ser do escritor. (...)
Assim, a personagem continua sendo vista como ser antropomórfico.

A personagem sob as luzes do século XX
No que diz respeito especificamente ao romance e à personagem de ficção, é somente com a obra Teoria do Romance, de Györgi Luckács, publicada em 1920, que essas questões são retomadas em novas bases. Luckács, relacionando o romance com a concepção de mundo burguês, encara essa forma narrativa como sendo o lugar de confronto entre herói problemático e o mundo do conformismo e das convenções. O herói problemático, também denominado demoníaco, está ao mesmo tempo em comunhão e em oposição ao mundo, encarnando-se num gênero literário, o romance, situado entre a tragédia e a poesia lírica, de um lado, e a epopeia e o conto, de outro. (...)
Ainda na década de 20, um outro crítico empenha-se em esclarecer alguns aspectos diretamente ligados ao romance e à personagem de ficção. Mais precisamente em 1927, aparece o livro Aspects of Novel, de E. M. Forster, romancista e crítico inglês que, apesar de todas as suas outras obras, imortalizou-se pela sua classificação de personagens em flat – plana, tipificada, sem profundidade psicológica – e round – redonda, complexa, multidimensional. (...)
Segundo Forster, as personagens, flagradas no sistema que é a obra, podem ser classificadas em planas e redondas. As personagens planas são construídas ao redor de uma única ideia ou qualidade. Geralmente, são definidas em poucas palavras, estão imunes à evolução no transcorrer da narrativa, de forma que as suas ações apenas confirmem a impressão de personagens estáticas, não reservando qualquer surpresa ao leitor. Essa espécie de personagem pode ainda ser subdividida em tipo e caricatura, dependendo da dimensão arquitetada pelo escritor. (...)
As personagens classificadas como redondas, por sua vez, são aquelas definidas por sua complexidade, apresentando várias qualidades ou tendências, surpreendendo convincentemente o leitor. São dinâmicas, são multifacetadas, constituindo imagens totais e, ao mesmo tempo, muito particulares do ser humano. Para exemplificar, poderíamos recorrer ao elenco das personagens criadas pelos bons escritores e que permanecem como janelas abertas para a averiguação da complexidade do ser humano e potência da escritura dos grandes narradores.
Os estudos desenvolvidos pelos formalistas, os quais só serão conhecidos no Ocidente por volta de 1955 com a publicação do livro Formalismo Russo, de Victor Erlich, constituem, num certo sentido, uma verdadeira ciência da literatura, contribuindo decisivamente para que a obra seja encarada como a soma de todos os recursos nela empregados, como um sistema de signos organizados de modo a imprimir a conformação e a significação dessa obra. (...)
De acordo com essa teoria, a personagem passa a ser vista como um dos componentes da fábula, e só adquire sua especificidade de ser fictício na medida em que está submetida aos movimentos, às regras próprias da trama. Finalmente, no século XX e através da perspectiva dos formalistas, a concepção de personagem se desprende das muletas de suas relações com o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma fisionomia própria.

            BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985. (p. 28-46)
Acesso: 03.01.1012


1.3 e 1.4. O FOCO NARRATIVO/NARRADOR
Ligia Chiappini Moraes Leite

A TIPOLOGIA DE NORMAN FRIEDMAN
3.      "Eu" como testemunha
4.      Narrador-protagonista
6.      Onisciência seletiva
7.      Modo dramático
8.      Câmera

           Tentando sistematizar as diversas teorias resenhadas na primeira parte do seu ensaio, para chegar a uma tipologia mais sistemática, e, ao mesmo tempo, mais completa, Norman Friedman começa por se levantar as principais questões a que é preciso responder para tratar do narrador: 1) quem conta a história? Trata-se de um narrador em primeira ou terceira pessoa? Não há ninguém narrando?; 2) de que posição ou ângulo em relação à história o narrador conta? (Por cima? Na periferia? No centro? De frente? Mudando?); 3) que canais de informação o narrador usa para comunicar a história ao leitor (palavras? Pensamentos? Sentimentos? Do autor? Da personagem? Ações? Falas do autor? Da personagem? Ou uma combinação disso tudo?); 4) a que distância ele coloca o leitor da história (próximo? Distante? Mudando?)?
           A tipologia do narrador de Friedman vai procurar fornecer elementos para responder a essas questões em cada caso, mas vai basear-se também na distinção de Lubbock e de outros teóricos examinados anteriormente, entre cena e sumário narrativo. Segundo Friedman,

a diferença principal entre narrativa e cena está de acordo com o modelo geral particular: sumário narrativo é um relato generalizado ou a exposição de uma série de eventos abrangendo um certo período de tempo e de uma variedade locais, e parece ser o modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge assim que os detalhes específicos, sucessivos e contínuos de tempo, lugar, ação, personagem e diálogo, começam a aparecer. Não apenas o diálogo mas detalhes concretos dentro de uma estrutura específica de tempo-lugar são os sine qua non da cena. (Point of View, p. 119-20.)
           Essa distinção, como dissemos, vai nortear a tipologia de Friedman, organizada do geral para o particular: "da declaração à inferência, da exposição à apresentação, da narrativa ao drama, do explícito ao implícito, da ideia à imagem". (Op. Cit., p.119.)
          Friedman chama a atenção, logo de início, para a predominância da cena, nas narrativas modernas, e do sumário, nas tradicionais.
 (...)
1. Autor onisciente intruso
           É a primeira categoria proposta por Friedman. Haveria aí uma tendência ao sumário, embora possa também aparecer a cena. Esse tipo de narrador tem a liberdade de narrar à vontade, de colocar-se acima, ou, como quer J. Pouillon, por trás, adotando um ponto de vista divino, como diria Sartre, para além dos limites de tempo e espaço. Pode também narrar da periferia dos acontecimentos, ou do centro deles, ou ainda limitar-se e narrar como se estivesse de fora, ou de frente, podendo, ainda, mudar e adotar sucessivamente várias posições. Como canais de informação, predominam sua próprias palavras, pensamentos e percepções. Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados com a história narrada.
           Os exemplos de Friedman para esse tipo são Fielding, em Tom Jones, e Tolstoi, em Guerra e Paz, pois ambos intercalam capítulos inteiros de digressões à narração da história, como se fossem verdadeiros ensaios à parte.
           Muito comum no século XVIII e no começo do século XIX, o narrador onisciente intruso saiu de moda a partir da metade deste século, com o predomínio da "neutralidade" naturalista ou com a invenção do indireto livre por Flaubert que preferia narrar como se não houvesse um narrador conduzindo as ações e as personagens, como se a história se narrasse a si mesma.
(...)
2. Narrador onisciente neutro
           A segunda categoria de Friedman, o narrador onisciente, ou narrador onisciente neutro, fala em 3ª pessoa. Também tende ao sumário embora aí seja bastante frequente o uso da cena para os momentos de diálogo e ação, enquanto, frequentemente, a caracterização das personagens é feita pelo narrador que as descreve e explica para o leitor. As outras características referentes às outras questões (ângulo, distância, canais) são as mesmas do autor onisciente intruso, do qual este se distingue apenas pela ausência de instruções e comentários gerais ou mesmo sobre o comportamento das personagens, embora a sua presença, interpondo-se entre o leitor e a história, seja sempre muito clara.

3. "Eu" como testemunha
            Seguindo na classificação de Friedman, o narrador-testumunha dá um passo adiante rumo à apresentação do narrado sem a mediação ostensiva de uma voz exterior.
           Ele narra em 1ª pessoa, mas é um "eu" já interno à narrativa, que vive os acontecimentos aí descritos como personagem secundária que pode observar, desde dentro, os acontecimentos, e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil. Testemunha, não é à toa esse nome: apela-se para o testemunho de alguém, quando se está em busca da verdade ou querendo fazer algo parecer como tal.
           No caso do "eu" como testemunha, o ângulo de visão é, necessariamente, mais limitado. Como personagem secundária, ele narra da periferia dos acontecimentos, não consegue saber o que se passa na cabeça dos outros, apenas pode inferir, lançar hipóteses, servindo-se também de informações, de coisas que viu ou ouviu, e, até mesmo, de cartas ou outros documentos secretos que tenham ido cair em suas mãos. Quanto à distância em que o leitor é colocado, pode ser próxima ou remota, ou ambas, porque esse narrador tanto sintetiza a narrativa, quanto a apresenta em cenas. Neste caso, sempre como ele as vê.
           Memorial de Aires, de Machado, pode ser, à primeira vista, um bom exemplo de narrador-testemunha.
(...)

4. Narrador-protagonista
           Podemos escolher Riobaldo, em Grande Sertão: veredas, como representante desta quarta categoria de narrador. Aí também desaparece a onisciência. O narrador, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um ponto fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos. Como no caso anterior, ele pode servir-se seja da cena seja do sumário, e, assim, a distância entre história e leitor pode ser próxima, distante ou, ainda, mutável.
           Em Grande Sertão: veredas, é do ponto de vista de Riobaldo que tudo é visto e narrado, sendo ele e seu misterioso amigo, Diadorim, personagens centrais.
          O mistério de Diadorim (homem de maneiras femininas por quem Riobaldo se apaixona platonicamente) existe como tal, porque é Riobaldo quem narra. Só ficamos sabendo a verdade quando ele próprio a descobre, no final. Antes, como não há nenhum narrador onisciente que nos revele o segredo, tanto Riobaldo como os leitores vivemos numa ambiguidade estranha em relação a Diadorim. Sentimos algo esquisito, diferente, nele, mas não sabemos identificar o que é.
(...)
5. Onisciência seletiva múltipla
           O quinto tipo, chamado por Friedman de onisciência seletiva múltipla, ou multisseletiva, é o próximo passo, nessa progressão rumo à maior objetivação do material da história. Se da passagem do narrador onisciente para o narrador-testemunha, e para o narrador-protagonista, perdeu-se a onisciência, aqui o que se perde é o "alguém" que narra. Não há propriamente narrador. A história vem diretamente, através da mente das personagens, das impressões que fatos e pessoas deixam nelas. Há um predomínio quase absoluto da cena. Difere da onisciência neutra porque agora o autor traduz os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens, detalhadamente, enquanto o narrador o narrador onisciente os resume depois de terem ocorrido. O quepredomina no caso da onisciência múltipla, como no caso da onisciência seletiva que vem logo a seguir, é o discurso indireto livre, enquanto na onisciência neutra o predomínio é do estilo indireto. Os canais de informação e os ângulos de visão podem ser vários, neste caso.
           Um bom exemplo é Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que começa com Fabiano e sua família (mulher, dois filhos e uma cachorra), fugindo da seca do Nordeste, em busca de uma terra menos inóspita. Depois de uma longa caminhada, sob o sol escaldante, encontram uma fazenda para trabalhar, e, a partir daí, o romance passa a enfocar sucessivamente cada personagem, dedicando-lhes alternadamente os capítulos em que nos são transmitidosseus pensamentos e sentimentos. Sonhos, frustrações, medos e lembranças aparecerem de forma um tanto fragmentária, através do indireto livre.
(...)
6. Onisciência seletiva
           Esta é uma categoria semelhante à anterior, apenas trata-se de uma só personagem e não de muitas. É, como no caso do narrador-protagonista, a limitação a um centro fixo. O ângulo é central, e os canais são limitados aos sentimentos, pensamentos e percepções da personagem central, sendo mostrados diretamente.
           Virgínia Woolf e, entre nós, Clarice Lispector são duas mestras no estilo indireto livre e na onisciência seletiva, com todas aquelas mulheres com quem a narração se identifica, a quem perscruta nos mínimos detalhes e de onde o mundo é perscrutado. Pense-se em Virgínia, de Mrs. Dalloway, ou em Clarice, já no seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, em boa parte dominado pela mente da personagem central, Joana.
(...)
7. Modo dramático
           Agora que já se eliminou o autor e, depois, o narrador, eliminam-se os estados mentais e limita-se a informação ao que as personagens falam ou fazem, como no teatro, com breves notações de cena amarrando os diálogos. Ao leitor cabe deduzir as significações a partir dos movimentos e palavras das personagens. O ângulo é frontal e fixo, e a distância entra a história e o leitor, pequena, já que o texto se faz por uma sucessão de cenas. Os exemplos de Friedman são The Awkward Age, de Henry James, e Hemingway, em alguns contos. Na ficção de James, como diz Lubbock, essa foi a experiência talvez mais radical em matéria de tratamento dramático; trata-se de uma técnica dificilmente sustentável em textos longos. Talvez por isso mesmo seja nos contos que ela funcione melhor. E, neles, Hemingway continua sendo o grande exemplo, assim como no Brasil, o nosso contemporâneo, Luiz Vilela, em livros como Tremor de terra, onde há contos inteirinhos em diálogo.
(...)
8. Câmera
           A última categoria de Friedman significa o máximo em matéria de "exclusão do autor". Esta categoria serve àquelas narrativas que tentam transmitir flashes da realidade como se apanhados por uma câmera, arbitrária e mecanicamente. No exemplo de Friedman, de Goodbye to Berlin, romance-reportagem de Isherwood (1945), o próprio narrador, desde o início, se define como tal: "Eu sou uma câmera".
           O nome dessa categoria me parece um tanto impróprio. A câmara não é neutra. No cinema não há um registro sem controle, mas, pelo contrário, existe alguém por trás dela que seleciona e combina, pela montagem, as imagens a mostrar. E, também, através da câmera cinematográfica, podemos ter um ponto de vista onisciente, dominando tudo, ou o ponto de vista centrado numa ou várias personagens. O que pode acontecer é que se queira dar a impressão de neutralidade. Cristopher Isherwood, que é um repórter, descreve no livro citado por Friedman, com minúcia e exatidão, as suas experiências de Berlim, mas são as suas impressões da cidade. A exatidão não apaga, embora possa disfarçar, a subjetividade.
           O noveau roman francês também se adequaria a esse estilo de narração tão afim ao cinema, não pela neutralidade, mas pelos cortes bruscos e pela montagem.
(...)


LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão). São Paulo: ática, 1985. Série Princípios. (p. 25-70)



1.5. O TEMPO
Donaldo Schüler
Tempo da narração
           O romance liga-se também ao tempo em que foi escrito. Se observamos em Iracema o recuo aos séculos obscuros dos primeiros confrontos de portugueses com índios, indicamos apenas um dos extremos temporais. Não se compreende esse passado remoto sem uni-lo ao projeto alencarino de procurar para a recém-inaugurada nacionalidade brasileira identidade étnica, cultural e linguística.
           O recuo às origens no Macunaíma tem outro sentido. Mário de Andrade, atento às contradições do Brasil já evoluído, tenta criar um símbolo para uma realidade multifacetada, avessa à redução simplista a alguns traços nacionais. José de Alencar e Mário de Andrade, por escreverem em momentos diferentes e com outras intenções, oferecem do Brasil imagens divergentes. Marcados pelo momento da narração, recorrem a recursos narrativos divulgados pela época de cada um.
            Como se vê, o mesmo passado é diversamente interpretado em momentos distintos. O presente, sempre móvel, altera a imagem do passado.
           A relevância que os românticos atribuem ao passado corre por conta deles. Identificamo-nos melhor com os conflituados caracteres de Machado, desvinculados da história pregressa, do que com os cristalizados caracteres de Alencar que deveriam determinar-nos desde tempos que já não são os nossos. Enquanto Alencar pretende amarrar-nos ao que já foi, Machado nos arroja a um futuro incerto, que sempre se renova. Ao criador de Brás Cubas, a brasilidade se apresenta como um instinto que, por não se fixar, constantemente se reinventa.
Tempo da leitura
           O tempo altera a leitura dos romances. Já não lemos Memórias póstumas de Brás Cubas como os leitores que acompanhavam as peripécias e reflexões do herói à medida que apareciam no periódico que os divulgava.
           Uma coisa é ler um romance aos pedaços, com intervalos determinados pelo órgão de divulgação e a inserção diária de experiências alheias ao mundo ficcional; oportunidade muito diferente oferece o livro cuidadosamente impresso, facultada a possibilidade de avançar, recuar, anotar e refletir.
           Proliferaram os intérpretes de Machado. Tentou-se esmiuçar a sua complexa psique de mulato. A abundância das fontes veio a exame.
           Estudaram-se os conflitos do segundo império. Observou-se a arte da prosa. Analisou-se a arquitetura da construção romanesca. Sucedem-se interpretações psicológicas, estilísticas, sociológicas, estruturais... Cada novo ensaio literário modifica a imagem do romance machadiano. Os capítulos que divertiam os primeiros leitores nos fazem exigências que não frequentaram as intenções do autor.
           Assim acontece com todos os romances que permanecem na lembrança de sucessivas gerações. Cada geração lê diferentemente os mesmos textos. O tempo modifica o que preserva. Esse é o tributo pago pelas obras que sobrevivem. Rabelais, que foi considerado por Voltaire escritor contraditório, aparece nos estudos de Bakhtin como autor sistemático, rigoroso, monumento eminente no desenvolvimento do romance.

SCHÜLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989. Série Fundamentos 49. (p. 58-59)



1.6. ESPAÇO
ESPAÇO E AMBIENTAÇÃO

Osman Lins (1976) diferencia espaço e ambientação. O primeiro relaciona-se com a cartografia, a realidade empírica e é, portanto, denotativo e explícito. O segundo está ligado à atmosfera do ambiente, aos significados simbólicos, conotativos e implícitos que deflagram de determinada situação no espaço físico, como a alegria, a angústia ou o medo.

Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado ambiente. Para aferição do espaço, levamos nossa experiência de mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos  do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa. (LINS, 1976, p. 77).

Dessa forma, o espaço é o palpável e a ambientação é o sentido. O estudioso desenvolve o conceito de ambientação a partir de três possibilidades gerais de realização nos textos narrativos: franca, reflexa e dissimulada. A ambientação franca: “se distingue pela introdução pura e simples do narrador”. (LINS, 1976, p. 79). Para fundamentar a ambientação franca e diferenciá-la da reflexa, o autor retoma a teoria de Philippe Hamon sobre a temática vazia e a plena, sendo, respectivamente, descrição pura ou denotativa e narração conotativa ou carregada de significados simbólicos. A ambientação franca consiste na descrição do espaço pelo olhar do narrador, por isso, vazia de subjetividade e a reflexa, por sua vez, está próxima da temática plena, em que o espaço descrito é impregnado pelas impressões subjetivas de uma personagem.
Para explicitar o que foi dito, Osman Lins (1976) apresenta como exemplo um trecho de Madame Bovary em que Emma recebe a carta de Rodolfo anunciando o rompimento entre eles e ela se dirige ao sótão para lê-la. O sótão é descrito por signos que revelam um ambiente de angústia e isolamento da personagem. O ambiente é matizado pela subjetividade de Emma, num momento em que a morte é iminente. “As ardósias deixavam cair a prumo um calor pesado, que lhe apertava as fontes e a sufocava”. (FLAUBERT Apud LINS, 1976, p. 81).
Se o espaço é descrito pela focalização da personagem, tem-se um caso de ambientação reflexa. Nesse exemplo retirado de Flaubert, embora o narrador esteja em terceira pessoa, não há dúvida de que o ambiente é descrito por meio da subjetividade da personagem Emma.
Um exemplo que contraria essa ambientação reflexa e se constitui como franca pode ser observado no terceiro capítulo de O Cortiço de Aluísio de Azevedo, em que se predomina a composição do retrato do ambiente geral do cortiço. “Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.” (AZEVEDO, 1997, p.30).
Dito de outro modo, a ambientação franca é feita por meio do olhar do narrador e a ambientação reflexa consiste na construção do relato por meio do olhar de um personagem: “as coisas, sem engano possível, são percebidas através da personagem”. (LINS, 1976, p. 82). Em ambos os casos, seja o narrador em terceira pessoa ou personagem, a voz narrativa faz uma pausa no relato da ação para se ocupar de dados do contexto, da moldura do espaço, no qual a personagem se insere.
Exemplo emblemático de pausa pode ser lido no décimo capítulo da primeira parte do romance Senhora de José de Alencar. Quando Aurélia aparece pela primeira vez a Fernando Seixas, após herdar a fortuna de seu antepassado. Ela aparece na porta do salão e o narrador faz uma pausa na ação por seis parágrafos seguidos para fazer uma longa e exuberante descrição do ambiente, do vestido de seda, do espírito altivo de Aurélia e de sua entrada triunfal no salão.
Além disso, essa ambientação é reflexa porque quem vê essa exuberância do ambiente é a própria Aurélia. “Atravessou a sala com o brando arfar que tem o cisne no lago sereno, e que era o passo das deusas. No meio das ondulações da seda parecia não ser ela quem avançava; mas que ao outros que vinham ao seu encontro”. Seixas vê a mesma entrada de Aurélia de forma diferente: “Se Aurélia contava com o efeito de sua entrada sobre o espírito de Seixas, frustrara-se essa esperança, porque os olhos do mancebo [...] não viram mais que um vulto de mulher atravessar o salão e sentar-se no sofá.” (ALENCAR, 1997, p. 47).
O terceiro tipo de ambientação é a mais complexa e de difícil apreensão. Ao contrário das outras duas supracitadas, a ambientação dissimulada não suspende o relato para emoldurar o ambiente, “exige a personagem ativa: o que a identifica é um enlace entre espaço e ação.” (LINS, 1976, p. 83). Trata-se de uma reciprocidade harmônica entre seres e coisas, entre personagens e espaço, “como se o espaço nascesse” dos próprios gestos das personagens. Não há pausas na ação para emolduração do espaço. Ambos, personagem e espaço, constituem-se numa relação dialética, um no outro.
Talvez um exemplo que Osman Lins não traz em sua análise, mas que merece ser lembrado é a descrição inicial do romance Mrs. Dalloway de Virginia Woolf.

Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores. Quanto a Lucy, já estava com o serviço determinado. As portas seriam retiradas dos gonzos; em poucos em pouco chegaria o pessoal de Rumpelmayer. Mas que manhã, pensou Clarissa Dalloway – fresca como para crianças numa praia! Que frêmito! Que mergulho! Pois sempre lhe parecera quando, com um leve ringir de gonzos, que ainda agora ouvia, abria de súbito as vidraças e mergulhava ao ar livre, lá em Bourton. Que fresco, que calmo, mas que hoje, não era então o ar da manhazinha; como o tapa de uma onda; como o beijo de uma onda; frio, fino, e ainda (para a menina de dezoito anos que ela era em Bourton) solene, sentindo, como sentia, parada ali ante a janela aberta que alguma coisa terrível ia acontecer; (WOOLF, 1980, p. 07).

 Nesse excerto do romance de Virginia Woolf, não há pausa no relato para descrever o ambiente de frescor da manhã que a personagem percebe. Ao contrário, enquanto Mrs. Dalloway decide comprar as flores e ouve o ringir de gonzos, o ambiente flui da própria personagem e é recoberto por uma sensação de calmaria que a leva a mergulhar no passado de sua juventude em Bourton. Não há pausa para falar do ambiente e depois voltar à ação. É como se o espaço nascesse da própria personagem, numa relação dialeticamente recíproca.
Dito de outro modo, na ambientação dissimulada, tem-se a diluição da moldura do espaço, assim como há a diluição da ordem cronológica. Presente e passado se fundem, espaço e personagem também. Mrs. Dalloway oscila entre Londres e Bourton, entre presente e passado, numa distensão temporal e espacial. Segundo Anatol Rosenfeld (1969), trata-se da crise do ponto de vista perspectívico do Renascimento, em que a noção de sujeito cognoscente entra em crise, perdendo sua posição em face do mundo, e isso é incorporado no romance moderno como tema e como estrutura narrativa. A ambientação dissimulada seria um desses recursos, juntamente com o fluxo de consciência, a fragmentação do enredo e a fusão de níveis temporais e espaciais.

Fonte: Revista Ícone
SANTANA, Marcela Ferreira da Silva. O espaço romanesco em Hotel Atlântico de João Gilberto Noll. In: Revista de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura. Volume 09 – Janeiro de 2012 – ISSN 1982-7717 pp. 101-103

Referências:
ALENCAR, J. Senhora. São Paulo: Globo, 1997.
AZEVEDO, A. O Cortiço. São Paulo: Globo, 1997.
LINS, O. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
ROSENFELD, A. Reflexão sobre o romance moderno. In: Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1969. p. 75-97.
WOOLF, V. Mrs. Dalloway. Trad. Mário Quintana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.



1.7.  A CRÔNICA
Jorge de Sá

À pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos são extremamente rápidos, e o cronista precisa de um ritmo ágil para poder acompanhá-los. Por isso a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito. Dessa forma, há uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade, sem que o narrador caia no equívoco de compor frases frouxas, sem a magicidade da elaboração, pois ele não perde de ser a transcriação exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaboração de um diálogo entre o cronista e o leitor, a partir do qual a aparência simplória ganha sua dimensão exata.
O dialogismo, assim, equilibra o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo tratados numa determinada crônica, tal como acontece em nossas conversas diárias e em nossas reflexões, quando também conversamos com um interlocutor que nada mais é do que nosso outro lado, nossa outra metade, sempre numa determinada circunstância. Mas não "circunstância" naquele sentido de um escritor que, embora não seja jornalista, precisa sobreviver – e ganha dinheiro publicando crônicas em jornais e revistas: o termo assume aqui o sentido específico de pequeno acontecimento do dia–a-dia, que poderia passar desapercebido ou relegado à marginalidade por ser considerado insignificante. Com o seu toque de lirismo reflexivo, o cronista capta esse instante brevíssimo que também faz parte da condição humana e lhe confere (ou lhe devolve) a dignidade de um núcleo estruturante de outros núcleos, transformando a simples situação no diálogo sobre a complexidade das nossas dores e alegrias. Somente nesse sentido crítico é que nos interessa o lado circunstancial da vida. E da literatura também.

SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios.
Disponível: http://www.ufrgs.br/proin/versao_1/cronica/index.html


1.8. ENREDO
Samira Mesquita

1. Considerações Gerais
Enredo e história
           A palavra enredo pode assumir, como nos trechos em epígrafe, algumas variações de sentido, mas não perde nunca o sentido essencial de arranjo de uma história: a apresentação/representação de situações, de personagens nelas envolvidos e as sucessivas transformações que vão ocorrendo entre elas, criando-se novas situações, até se chegar à final – o desfecho do enredo. Podemos dizer que, essencialmente, o enredo contém uma história. É o corpo de uma narrativa.
Contar e ouvir histórias são atividades das mais antigas do homem. Pessoas de todas as condições socioculturais têm prazer de ouvir e de contar histórias. Um romancista e ensaísta inglês, E. M. Forster, chama essa atividade de atávica, isto é, transmitida desde a idade mais remota da humanidade, ligada aos rituais pré-históricos do Homem de Neanderthal, força de vida e de morte, conforme sua capacidade de manter acordados ou de adormecer os membros de um grupo, nas noites dos primeiros dias... O mesmo autor cita ainda a protagonista de As mil e uma noites, Xerazade, que se salvou da morte contando histórias que, a cada noite, eram interrompidas em momentos de calculado suspense, a fim de motivar a curiosidade do sultão. A tal ponto chegou a habilidade da narradora, que, depois de mil e uma noites, o poderoso rei não só não a mandou matar, como também apaixonou-se e com ela se casou. Lembra o autor que todos nós somos como o sultão. Interessamo-nos intensamente pelo desenrolar de uma história bem contada. (Estão aí as novelas de TV, impondo a milhares de pessoas em todo o País, e até no Exterior, um tipo massificante de lazer, num horário igualmente imposto.) (...)
Constituir um enredo é começar um jogo. O narrador é um jogador, e forma, com o leitor e o próprio texto, o que se pode chamar uma comunidade lúdica.
No ritual de se pegar um livro para ler ou de se sentar à volta ou diante de um narrador, uma tela de cinema ou de TV, para ler/ver/ouvir contar-se uma história, desenrolar-se um enredo, tal como no exercício do jogo, há a busca do prazer, há tensão, competição, há a máscara, a simulação, pode haver a vertigem.

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Enredo e gênero
           O enredo pode-se desenvolver num romance, num conto, numa novela, isto é, numa obra em prosa; pode também ser encontrado num poema, numa peça de teatro, num filme, numa novela de televisão, numa fotonovela, numa história em quadrinhos; pode aparecer também na música, como espinha dorsal de um desfile de escola de samba: o samba-enredo. (...)
           É indissolúvel a relação enredo/narrativa. Porém, você não falará no enredo de um poema lírico, um poema que seja pura expressão de estados de alma, de uma subjetividade.
           O enredo é categoria do gênero épico, isto é, narrativo; supõe um distanciamento entre o sujeito que narra e o mundo. [...]
Fonte:
MESQUITA, Samira Nahid de. O Enredo. São Paulo: ática, 1987. Série Princípios. (p. 7-12)
Disponível: http://www.ufrgs.br/proin/versao_1/enredo/index01.html