Com análises de Marcondes Calazans e Jefferson Evânio sobre texto de VCA
O
“ultrafuturo” é um termo cunhado por VCA, no final de 2014, em um de seus
artigos sobre poesia absoluta (Poesia além da mimética), esta que, na opinião
dele, é atemporal. O ultrafuturismo, divergente do futurismo de Marinetti, não
nega apenas o passado, mas vale-se dele para construir um ponto cardeal, ainda
que oposto, sobretudo transpassador de tempos.
O futurismo
era um presente que apenas apontava para o futuro, encantado com a velocidade
das máquinas, em 1909. Pouco mais de um século distantes de nós, os seguidores
do italiano Filippo Tommaso Marinetti foram ultrapassados exatamente pela
máquina que os encantou, em sua última versão, o computador. Portanto, urgia
que se lançasse uma semente bem mais longe, onde as engrenagens industriais não
pudessem chegar, no indecifrável e sempre profícuo solo da mente humana. Como
se sabe, existe uma capacidade infinita de possibilidades linguísticas a serem
estudadas sobre o pensamento e suas formas inusitadas de “escrever” o mundo. É
nesse lugar que se encaixará o ultrafuturismo de Vital Corrêa de Araújo. Uma
linguagem carregada ao extremo de “ultrassentidos,” desconstrução permanente
dos sintagmas verbais. Como ele mesmo afirma, é o “que virá do por vir vindo.”
Com
certeza, estamos falando de uma nova revolução da palavra e isso promove uma
antecipação anacrônica (no sentido de contrariar o que é cronológico) do
pensamento contemporâneo. É como se pudéssemos provar do futuro bem antes que
ele nos encontre. O tempo que há de vir, talvez chegue daqui a cinco décadas,
mas podemos dizer que ele já se pode acessar no plano da linguagem, obscura
para uns, mas disponível para poucos, em forma de poesia absoluta. (Admmauro Gommes, Palmares,
PE, 11.11.14)

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POESIA ALÉM DA MIMÉTICA
Vital Corrêa de Araújo
Têm
sido extremamente válidas e sobremaneira significativas para mim as
contribuições teóricas e as visões práticas expendidas, acerca do que seja ou
possa ser poesia absoluta (no sentido de não ser relativa ao passado, com a marca
vencida), dos professores da FAMASUL – Palmares: Admmauro Gommes, Sylvia
Beltrão, João Constantino, Márcia Maria, Marcondes Torres Calazans, Ricardo
Guerra e Romilda Andrade, entre outros, que se estão debruçando sobre essa
avançada “modalidade de rima”, concorde com o tempo atual (o século XXI).
A
obra (de arte) poética deve refletir expressamente a experiência do tempo, revestir-se
ou dar forma a um estilo da época em devir (em substância e não en passant).
Estilo epocal (atual), que, por sua vez, reflita o mundo da atualidade a que
pertença o ser. Ir ao devir e não viver do já ido. Pensar (e não passar) o
tempo, não ser só passado pelo tempo. Viver e “fazer” a arte da palavra, in casu,
que contenha e contemple esse tempo (hoje, agora) e vise ultrapassá-lo... e
nunca regressá-lo.
Daí,
a poesia – que reflita o ser em devir – repudiar o estado mero de vivências
pessoais (como pregava Dilthey, em Poesia e vida) e expressar a intuição do
sendo e do será objetivamente (não o eu empírico mas a metamorfose do mundo). O
imaginário devir, não o imaginário devém.
Toda
obra de arte consequente (de Rilke a Picasso, de Murilo Mendes a Kandinski, de
CDA a Matisse) deve ser capaz de poder vencer o tempo, ultrapassá-lo, e nunca
se limitar a comtemplar o umbigo do que passou. Isto é, despojar-se das meras e
impassíveis realidades cotidianas para transcender as substancialidades fixas.
Ao
poeta absoluto (esse tipo de deus da nova palavra) cabe o milagre da
transubstancialização (mais do que mera transubstancialidade) da palavra em ato
de ação poética, que modifique ou contribua para transformar a realidade
exterior, a partir da publicação do íntimo (do tempo).
É
essa ação espiritual a causa da poesia (nas duas acepções do termo causa: bandeira
e razão. O ato poético (não relativo) absoluto, isto é, quando autêntico e
transfigurador, cria o seu próprio corpo (forma), ativa o porvir e não é
passivo dos débitos do passado que se arraste (soneticalmente ultrapassado).
Não vive o poema absoluto do “ultrapassado”, porém se alimenta do ultrafuturo.
É o poema (a forma) talhado à medida do homem de hoje. E não o homem já passado
(ou estragado) de tempo vencido.
A
poesia elementar (passada) representa, descreve, denota algo, enquanto que o
canto absoluto transfigura tal representação, tal mimética.
Ao
impor transfiguração ao ser das coisas (do homem, dos objetos, da sociedade), a
poesia absoluta adquire, ativa-se, reverte-se de significado espiritual (e não
de mero sentido passivo), manifestando a substância desse ser em ação (no ato
poético absoluto).
A
coisa a que dê forma (quaisquer que sejam a coisa e a forma, nunca forma fixa –
e deletéria) deve significar, ou melhor, ser significativa de algo diferente (e
não o mesmo – de sempre, do passado), sendo ao mesmo tempo e simultaneamente
sinal e coisa. É a impregnação de um sentido além que conceda expressividade
(algo mais do que o sentido contenha ou abarque).
Eis
o famigerado sentido do poema absoluto. Um sentido nunca imóvel, fixo,
definitivo, vencido. Mas sentido em devir. Devendo, não devido (ou nos devidos
termos burocráticos do poema relativo ao passado que vive vegetativamente até
hoje). Não sentido dado, porém sempre construído, em conjunto, pelo poeta e seu
leitor. Nunca um sentido dado de todo, portanto, mas um além-sentido. Que
transporte em si – esse ultrassentido – a experiência viva, vital do tempo e
assim universalize e atualize o espírito humano em transporte espaciotemporal.
Só via Poesia Absoluta (nova forma nova) é possível manifestar-se a substância
da época (revolucionária tecnologicamente) que vivemos.
Maritain
Jacques
Maritain (e Raíssa), em Situação da poesia, dizia certeiramente que a arte deve
estar sempre apontada para o eterno e não datada.
Em
época de tantos sucessos, a poesia não pode ponderar o passado e tratar do que
sucedeu, mas ultrapassar o futuro, pela veia do imaginário (ou via da “imaginaria”),
e dizer, conotar, expressar o que sucederá (o que virá do por vir vindo).
Poesia
que não só fulgure o ser real, como também o possível de sê-lo.
Resumo:
Si le monde etait claire, l’art ne serais pas. (Albert Camus).
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ULTRAFUTURO E
ULTRAFUTURALISMO
Marcondes Torres Calazans
Aqui, por sua vez
irei me arriscar estabelecer relacionalidade entre o termo cunhado por Vital
Corrêa “Ultrafuro”, à expressão “Ultrafuturalismo”, usado por Friedrich
Nietzsche quando profeticamente saudou a Europa em fins do século XIX,
predizendo para a humanidade uma era de conflitos que diria sim ao animal
bárbaro, ou mesmo selvagem, que existe dentro de nós, o qual nasceria em seu
estado embrionário no século XIX, se projetando no século XX, e, se
consolidando no século XXI.
O termo apontado pelo filósofo Nietzsche assinala
para uma consequência óbvia de conflito gerada pelo que se convencionava chamar
de futuro inevitável da humanidade caracterizada por gastos elevados na
fabricação de armas e pela transformação das mortes em subproduto da indústria em
grande escala.
A Europa estava em pleno auge de sua vitalidade
criadora, com Sigmund Freud mostrando todo um universo que existe além da
razão; Karl Marx explicando cientificamente o capitalismo a ponto de demoli-lo,
a partir da denúncia do Estado como produto e instrumento de controle da classe
dominante, e Van Goghe, através de sua arte atormentada, reclamando uma
sociedade mais humana.
Em seu livro “As palavras e as coisas”, Michel
Foucault para entrar no campo das terminologias, apresenta-nos a expressão
“similitudes" que, para ele, é a escrita das coisas, e o ser da linguagem.
No termo, ele questiona sobre as assimilações
perguntando e respondendo ao mesmo tempo:
“a partir de qual a priori histórico foi
possível definir o grande tabuleiro das identidades distintas que se
estabeleceu sobre o fundo confuso, indefinido, sem fisionomia e como que
indiferente, das diferenças? Daquilo que, para uma cultura é ao mesmo tempo
interior e estranho, a ser, portanto excluído (para conjurar-lhe o perigo
interior), encerrando-o, porém (para reduzir-lhe a alteridade); a história da
ordem das coisas seria a história do Mesmo — daquilo que, para uma cultura, é
ao mesmo tempo disperso e aparentado, a ser, portanto distinguido por marcas e
recolhido em identidades”. (FOUCAULT, São Paulo, 2000)
Considerando o
termo acima, podemos concluir que o “Ultrafuturo” de Vital Corrêa é o “presente
das coisas presentes”, e o Ultrafuturalismo de Friedrich Nietzsche é o
“presente das coisas futuras”, ou seja, tudo se resume no agora.
Os códigos fundamentais de uma cultura — aqueles
que regem sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas,
seus valores, a hierarquia de suas práticas — fixam, logo de entrada, para cada
homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de
encontrar.
Talvez seja isso...
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TRANSMUTAR OS VALORES E ELEVAR A POTÊNCIA DE AGIR
Jefferson Evânio (História/FAMASUL)
Dois termos
e um problema incitam a reflexão sobre esta espécie de “encantamento’’ e/ou
elevação poética do pensamento do Devir. Talvez esta seja uma forma de
revelação do Sein hiddegeriano, ocultado há séculos pelas “nuvens escuras’’ de
nossa “natureza agressiva’’ (Freud), nosso “animal selvagem’’ (Nietzsche) de
natureza egoísta (Kant). Romper com o pensamento de um campo de experiência
fundado no Idealismo platônico-aristotélico, cristalizado pela cristandade
e seus pensadores (o grande nome aqui é Tomás de Aquino. Este, por sua vez, uma
espécie de transfigurador da filosofia em arte escolástica, que a legitima, que
a oferece o suporte teórico que a teologia necessita para ter cor), de fato, é
um desafio, desafio aliás já aceito por pensadores de “agora’’ – o quanto o
pensamento de Heráclito, Nietzsche, Spinoza, Shopenhauer, parece fundar toda
esta transmutação da linguagem.
A transmutação de valores, tema relevante na
filosofia a golpes de martelo de Nietzsche, indica um meio (forma), único
caminho possível de vencer o que denomina de “advento do niilismo’’. Este nihil
que percorre todas as células do exato oposto do Super-homemn nietzschiano,
afundou em águas gélidas as possibilidades de Aurora, criou entre as
temporalidades uma espécie de “mortificação do devir’’, sacralizou um recorte
imoral do passado, fundando no Ser e em seu presente as profundas rupturas com
a criatividade humana.
Para tal efeito, recordando o grande Spinoza,
resta-nos tão somente saber como? Spinoza responde decifrando aquilo que move
nossas ações, o que chama de “potência de agir’’. O pensamento imbricado na
ação, a energia que nos torna estrelas, brilhamos agora, vivos, não depois. A
vida em Spinoza é local de inscrição da reflexão do espírito humano, e
manifestação de sua energia vital através dos movimentos do corpo. Então, somos
livres! E a angústia definida por Jean Paul Sartre nos acompanhará sempre. E
isso é uma dádiva e não um problema! Espíritos livres e angustiantes, negadores
da poética passada – e sacralizadora do outrora -, buscam romper com o que
Halévy definiu tão bem com duas expressões: “tijolos elementares imutáveis’’
que são defendidos até a morte pela “necessidade psicótica pela rigidez’’.
Necessidade que teme o indecifrável, que alimenta a forma do pensar cartesiano
e nega toda a ruptura.
Pois bem, sendo a transmutação e a potência de agir
os fundamentos últimos já apontados por Nietzsche e Spinoza para uma
reconfiguração do pensar o homem e sua experiência “trágica’’ – ou seríamos
capazes de discordar de Freud ao apontar as causas do sofrer humano; “a
prepotência da natureza’’, a fragilidade dos corpos e a incapacidade dos
códigos que regulam as nossas condutas?’’ Este terceiro ponto nos interessa
bastante. Pois somos culpados pela nossa desgraça. A “poesia,’’ assim como a
Arte, tem sido por muito tempo, como apontou Umberto Eco, um espaço fictício
para a fuga da Angst, a arte é assim espaço imaginário onde só lá e em lugar
nenhum se encontra uma Verdade e harmonia que o tempo e a realidade objetiva
enterrou. Zygmunt Baumam nos convida a refletir ao afirmar que “banidas da realidade, as verdades só podem
esperar encontrar sua segunda morada, exilada na morada da arte’’.
Não sendo permitido escrever mais, pois não consigo
expressar neste espaço delimitado que me forçou a recortar trechos de meu
escrito para a aceitação de sua postagem pela máquina! A palavra que gostaria
de salientar e a ÉTICA. Problematização da transmutação de valores, espécie de
“Super –eu” freudiano da potência do agir humano.
Transmutar os valores implica à elevação da
potência de agir Spinozana. Implica em rasgar o véu da concepção escatológica
de tempo/espaço, constitui-se em um novo modus operandi do agir humano. Eeste,
por sua vez, imbricado no devir. Sendo o termo “ultrafuturo’’ compreendido aqui
como espaço (forma) de desconstrução de uma temporalidade objetal, sentimental,
ideológica e cultural dada; imutável, sólida e permanente, resta-me considerar
a preocupação ética que advém de projeto realmente consistente.
Pressuponho ser a preocupação ética essa espécie
de “sombra psicológica’’, talvez em sua forma mais primitiva sob a supervisão
e/ou vigilância do “Super-eu’’ freudiano, o elemento fundamental a toda
transfiguração da relação entre Ser e Tempo. Aqui, nossa reflexão tem um alvo
que ultrapassa a primeira pessoa, o Outro. O universo do outro – não sua
relação com o tempo -, mas, contudo, o conteúdo ideativo de sua condição
humana. Até onde nos é permitido compreender o “ultrafuturo,’’ aplicado na
conceituação de uma “Poesia Absoluta’’, entendemos o fundamento de sua solidez,
sobretudo, quando se propõe a indagar uma poesia que da mesma forma
consideramos fria, presa em seus sentidos cristalizados pelo poder de uma
outrora vigiada. Não obstante, a ética, compreendida em nosso tempo (e essa
nada tem a ver com seu “mito fundador,’’ isto é, o pensamento grego, onde a
ética encontrou na pessoa de Aristóteles sua mais perfeita tentativa em aliar o
comportamento ao Cosmo), como uma inteligência compartilhada em busca da
harmonia entre os homens, não pode desprender-se do “ultrafuturo’’, quando
este, por sua vez, é transportado para a construção da realidade objetiva. Se
esta é sua preocupação, evidentemente.
Se esta forma de arte intervém no plano da
concretude humana, seja na relação entre Ser e Tempo, ou na forma como eles
devem ser compreendidos, o universo do Outro é local de inscrição de certas
categorias que nem o devir pode solapar. Universalizar a ruptura com certos
objetos frios, por meio de um “ultrassentido’’ da Arte, pressupõe lembrar ao
Outro a preocupação da primeira com a liberdade do segundo.
Marc Halévy propõe esta reconfiguração da linguagem
linear, hierarquizada, unívoca e presa a um passado/presente. Segundo este,
nossa forma de representar o mundo deve ser “completada e superada por novas
metalinguagens poéticas, metáforas e simbólicas’’. Neste espaço, a ética
representada pelo universo do Outro reclama o respeito à vida de estruturas
cansadas em ter a “alma de suas culturas’’ invadida pelo espectro de nossos desejos.
Aqui, a preocupação em si é a vida, a liberdade que a poesia mais intelectiva
(ultrafuturista), deve conceber a si mesma e ao espaço do não-dito, no plano da
concretude, isto é, quando esta ultrapassa os espaços da “poesia imagética’’ e
se propõe a problematizar a complexidade do real. “Vamos ao fundo do
desconhecido para encontrar o novo’’ como escrevia Baudelaire. Afinal, como
afirmou Nietzsche, “o que importa é a eterna vivacidade’’.
Talvez seja a ética o fundamento último do agir
“ultrafuturo’’. Na poesia útil à vida, e à realidade objetiva, o que se propõem
a ser o seu elemento mais viscoso e necessário.
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