2 de março de 2015

PALINÓDIA

Uma crônica de Roberto de Queiroz*

O ônibus fazia uma curva e, de repente, o motorista pisou no freio. A causa da súbita freada foi o excesso de velocidade. A curva era acentuada e, para fazê-la, era preciso reduzir a velocidade antes da placa indicadora, cuja marca era de 20 Km/h. Mas acredito que o motorista passou desatento a tal indicação, pois o ônibus ia a aproximadamente 60 Km/h.
Roberto de Queiroz
Era inverno. E, por causa da chuva, que aterrissara sobre a pista durante toda a noite, havia uma camada fina, gosmenta, de barro vermelho sobre a face direita da curva em questão. Por baixo dessa camada de barro, havia a construção original da pista, que se compunha de uma mistura não homogênea de brita e piche.
No momento em que o motorista pisou no freio, o ônibus reduziu, de súbito, a velocidade e fez um ligeiro atravessamento para o lado esquerdo da curva, o qual era acidentado por uma enorme barreira. O veículo transitava ladeira acima. Levava os trabalhadores de uma empresa. Eu era um deles. (Se o ônibus tivesse derrapado um pouco mais adiante, ai de nós!) O que impediu que o coletivo descesse barreira abaixo foi um pezinho de azeitona roxa que nascera, por acaso e para nossa sorte, na base principal da barreira.
Durante a colisão do veículo com o pezinho de azeitona roxa, os passageiros colidiram-se entre si e com as cadeiras. Eu colidi com o vidro dianteiro do coletivo. Contudo a colisão não foi grande. O motorista foi quem saiu do ônibus primeiro. Não sofreu um arranhão sequer. Nem ao menos quebrou os óculos fundo de garrafa.
Após saírem todos do veículo, um passageiro proferiu: “Cadê o motorista?” Outro: “É culpa dele!” E ainda outro: “Vamos dar um cacete nesse cara!” Enquanto isso, o motorista chegava ao acostamento da pista e girava qual um peru louco, comentando alternada e confusamente: “Foi o barro... Foi o barro... Foi o barro...”
Eu e os demais passageiros subíamos barreira acima, em direção ao acostamento da pista. Nem bem acabáramos de chegar ao acostamento, quando um amigo que subira a meu lado me alertou: “Tua perna está coberta de sangue. Não estás vendo?” Desmaiei de repente. Ao desmaiar, bati muito forte com a cabeça no chão. Foi um deus-nos-acuda. Meu amigo, para tentar fazer-me tornar, colocou-me de pé. Todavia, em vez de caminhar ao encontro do tornamento, eu caminhava ao encontro do apagamento total.
Quase morri, é verdade. E teria morrido, se não fosse um motorista-carreteiro que passava por ali. Ainda pude ouvir quando o homem gritou: “Deitem ele no chão!!! Deitem ele no chão!!!” O motorista-carreteiro parou rapidamente o veículo e foi ao meu ocasional encontro. Com maestria, o homem pôs as duas mãos sobre meu peito e o pressionou fortemente. Ainda me lembro muito bem de quando segurei os dois braços dele. Eu o sentia fazer pressão sobre meu peito, mas não conseguia enxergar nada.
Ouvia apenas os desvarios de alguns agourentos que se faziam presentes ali e assistiam murmurantes àquela cena. Ainda recordo o proferir de um deles: “Ele está morrendo...” Não, eu não estava morrendo. Aquele homem me salvava: pouco a pouco, fazia-me vir à tona (acordar outra vez para a vida). E finalmente pude, com toda a minha força, segurar-lhe os braços e abrir definitivamente os olhos.
O homem em questão era carrancudo (“muito sério”). E eu não tinha simpatia pelos carrancudos. Julgava negativa e precipitadamente os carrancudos. Mas hoje as coisas mudaram. A ação terna e misericordiosa daquele homem e o fato de fazer-me respirar outra vez fizeram com que minha concepção tomasse um rumo diferente e definitivo a esse respeito. Fizeram também com que eu ficasse definitivamente em débito com ele.
Eu fazia parte de uma coletividade de ingênuos que julgava equivocada e previamente as pessoas. Mas aquele homem me fez sair desse grupo. Devo a ele a permanência de meu fôlego de vida, e a Deus, a generosidade de fazê-lo passar por ali naquele exato momento. E sequer tive a oportunidade de agradecer-lhe. Antes que eu me levantasse, ele atravessou a pista, acelerou o carro e sumiu na neblina.

* Poeta, prosador, professor de Português e especialista em Letras. Autor de “Leitura e escritura na escola: ensino e aprendizagem”, Livro Rápido, 2013, entre outros.

Esta crônica foi publicada na Folha de Pernambuco, 14/05/2014, Opinião, p. 4


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3 comentários:

  1. Para início de conversa, onde começa a criatividade do escritor? Será que este fato aconteceu mesmo ou é tudo fruto de sua imaginação? O que a literatura tem a ver com a verdade comprovada?

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  2. Fábio Nazaro Chagas Silva (Primeiro período de Letras)28 de fevereiro de 2015 às 16:41

    Em meio a esse contexto entende-se que a criatividade começa pelo fato do escritor retratar uma história ou um poema já existente de uma forma diferente, apenas remodelando-a e tornando-a uma crônica. Pode ter ocorrido boa parte do fato, porém, o autor sempre procura incrementar o texto utilizando elementos que provoque a curiosidade do leitor, ou seja, palavras que causam o estranhamento fazendo com que o leitor reflita sobre o que significa aquela palavra ou o que o autor quis dizer quando a escreveu.

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  3. Pra continuar a conversa, creio que o escritor pode sim ter passado por algo parecido. Porém, é imprescindível que ele use sua imaginação para prender o leitor, pois o fato verdadeiro poderia se tornar enfadonho. Como na literatura nada pode ser comprovado, cabe a nós tentarmos decifrar esse emaranhado de informações e a imensidão de significados. A propósito, aí vai a minha frase que não falei em sala, pois não deu tempo: " És um mar em tamanha bravura, que nem mesmo a doçura do amor te pode domar."

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