Uma
crônica de Roberto de Queiroz*
O
ônibus fazia uma curva e, de repente, o motorista pisou no freio. A causa da
súbita freada foi o excesso de velocidade. A curva era acentuada e, para
fazê-la, era preciso reduzir a velocidade antes da placa indicadora, cuja marca
era de 20 Km/h. Mas acredito que o motorista passou desatento a tal indicação,
pois o ônibus ia a aproximadamente 60 Km/h.
Roberto de Queiroz |
Era
inverno. E, por causa da chuva, que aterrissara sobre a pista durante toda a
noite, havia uma camada fina, gosmenta, de barro vermelho sobre a face direita
da curva em questão. Por baixo dessa camada de barro, havia a construção
original da pista, que se compunha de uma mistura não homogênea de brita e
piche.
No
momento em que o motorista pisou no freio, o ônibus reduziu, de súbito, a
velocidade e fez um ligeiro atravessamento para o lado esquerdo da curva, o
qual era acidentado por uma enorme barreira. O veículo transitava ladeira
acima. Levava os trabalhadores de uma empresa. Eu era um deles. (Se o ônibus
tivesse derrapado um pouco mais adiante, ai de nós!) O que impediu que o
coletivo descesse barreira abaixo foi um pezinho de azeitona roxa que nascera,
por acaso e para nossa sorte, na base principal da barreira.
Durante
a colisão do veículo com o pezinho de azeitona roxa, os passageiros
colidiram-se entre si e com as cadeiras. Eu colidi com o vidro dianteiro do
coletivo. Contudo a colisão não foi grande. O motorista foi quem saiu do ônibus
primeiro. Não sofreu um arranhão sequer. Nem ao menos quebrou os óculos fundo
de garrafa.
Após
saírem todos do veículo, um passageiro proferiu: “Cadê o motorista?” Outro: “É
culpa dele!” E ainda outro: “Vamos dar um cacete nesse cara!” Enquanto isso, o
motorista chegava ao acostamento da pista e girava qual um peru louco,
comentando alternada e confusamente: “Foi o barro... Foi o barro... Foi o
barro...”
Eu
e os demais passageiros subíamos barreira acima, em direção ao acostamento da
pista. Nem bem acabáramos de chegar ao acostamento, quando um amigo que subira
a meu lado me alertou: “Tua perna está coberta de sangue. Não estás vendo?”
Desmaiei de repente. Ao desmaiar, bati muito forte com a cabeça no chão. Foi um
deus-nos-acuda. Meu amigo, para tentar fazer-me tornar, colocou-me de pé.
Todavia, em vez de caminhar ao encontro do tornamento, eu caminhava ao encontro
do apagamento total.
Quase morri, é verdade. E teria
morrido, se não fosse um motorista-carreteiro que passava por ali. Ainda pude
ouvir quando o homem gritou: “Deitem ele no chão!!! Deitem ele no chão!!!” O
motorista-carreteiro parou rapidamente o veículo e foi ao meu ocasional
encontro. Com maestria, o homem pôs as duas mãos sobre meu peito e o pressionou
fortemente. Ainda me lembro muito bem de quando segurei os dois braços dele. Eu
o sentia fazer pressão sobre meu peito, mas não conseguia enxergar nada.
Ouvia
apenas os desvarios de alguns agourentos que se faziam presentes ali e
assistiam murmurantes àquela cena. Ainda recordo o proferir de um deles: “Ele
está morrendo...” Não, eu não estava morrendo. Aquele homem me salvava: pouco a
pouco, fazia-me vir à tona (acordar outra vez para a vida). E finalmente pude,
com toda a minha força, segurar-lhe os braços e abrir definitivamente os olhos.
O
homem em questão era carrancudo (“muito sério”). E eu não tinha simpatia pelos
carrancudos. Julgava negativa e precipitadamente os carrancudos. Mas hoje as
coisas mudaram. A ação terna e misericordiosa daquele homem e o fato de
fazer-me respirar outra vez fizeram com que minha concepção tomasse um rumo
diferente e definitivo a esse respeito. Fizeram também com que eu ficasse definitivamente
em débito com ele.
Eu
fazia parte de uma coletividade de ingênuos que julgava equivocada e
previamente as pessoas. Mas aquele homem me fez sair desse grupo. Devo a ele a
permanência de meu fôlego de vida, e a Deus, a generosidade de fazê-lo passar
por ali naquele exato momento. E sequer tive a oportunidade de agradecer-lhe.
Antes que eu me levantasse, ele atravessou a pista, acelerou o carro e sumiu na
neblina.
* Poeta, prosador, professor de Português e
especialista em Letras. Autor de “Leitura e escritura na escola: ensino
e aprendizagem”, Livro Rápido, 2013, entre outros.
E-mail: robertodequeiroz@yahoo.com.br /
Facebook: https://www.facebook.com/robertodequeiroz.2
Esta crônica foi publicada na Folha de Pernambuco,
14/05/2014, Opinião, p. 4
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Para início de conversa, onde começa a criatividade do escritor? Será que este fato aconteceu mesmo ou é tudo fruto de sua imaginação? O que a literatura tem a ver com a verdade comprovada?
ResponderExcluirEm meio a esse contexto entende-se que a criatividade começa pelo fato do escritor retratar uma história ou um poema já existente de uma forma diferente, apenas remodelando-a e tornando-a uma crônica. Pode ter ocorrido boa parte do fato, porém, o autor sempre procura incrementar o texto utilizando elementos que provoque a curiosidade do leitor, ou seja, palavras que causam o estranhamento fazendo com que o leitor reflita sobre o que significa aquela palavra ou o que o autor quis dizer quando a escreveu.
ResponderExcluirPra continuar a conversa, creio que o escritor pode sim ter passado por algo parecido. Porém, é imprescindível que ele use sua imaginação para prender o leitor, pois o fato verdadeiro poderia se tornar enfadonho. Como na literatura nada pode ser comprovado, cabe a nós tentarmos decifrar esse emaranhado de informações e a imensidão de significados. A propósito, aí vai a minha frase que não falei em sala, pois não deu tempo: " És um mar em tamanha bravura, que nem mesmo a doçura do amor te pode domar."
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